ARTIGO – Bem aventurados os que não se sucumbirem ao abuso de poder religioso*

“Água mole em pedra dura tanto bate até que fura”! O ano era 2018. O Tribunal Superior Eleitoral confirmava uma decisão do TRE mineiro e condenava 02 deputados por abuso de poder religioso. A Corte à época fundamentou sua decisão no fato das igrejas possuírem privilégios fiscais e o pedido de voto no templo desaguou em abuso de poder econômico. Pouco se comentou sobre a decisão, encarada como um fato isolado.

Convivi com a lição maternal de que com o tempo a gente aprende. Verdade, inclusive venho aprendendo muito na advocacia eleitoral com o TSE que é possível uma interpretação a partir daquilo que o legislador não disse.

Estamos em junho de 2020. O ministro Edson Fachin sustenta a necessidade de separação e independência entre Estado e religião para garantir ao cidadão autonomia para escolher seus representantes políticos. De acordo com o ministro, precisa-se a partir de agora incluir a investigação do abuso de poder de autoridade religiosa no âmbito das Ações de Investigação Judicial Eleitoral, afinal a exploração política da fé religiosa encontra obstáculo tanto no âmbito da regulação publicitária como na regra que trata da anulação de eleições viciadas pela captação ilícita de votos, “conceito que engloba, por expressa remissão legislativa, a interferência do poder (econômico e de autoridade) em desfavor da liberdade do voto”.

Recentemente assisti uma exposição do professor Humberto Ávila e do muito que o renomado doutrinador ensinou destaco algo que cabe bem na discussão central deste escrito. Para se falar em segurança jurídica, disse ele, o cidadão precisa conhecer o direito, confiar no direito e prever o direito. Sem conhecer o conteúdo das regras a serem obedecidas, sem confiar que aquilo que o direito garantiu ontem será obedecido hoje e sem conseguir prever quais são as consequências que serão aplicadas amanhã relativamente aos atos que foram praticados hoje, não há segurança jurídica necessária.

Abuso do poder religioso é um instituto inexistente na Constituição Federal do Brasil e nas legislações eleitorais. Ao contrário, a diversidade religiosa constitui direito fundamental prevista no texto constitucional. Trata-se então de mais uma perigosa criação jurisprudencial que causa ainda mais confusão para candidatos, eleitores e operadores do direito eleitoral. Qual a próxima invenção da justiça eleitoral sem amparo legal? Abuso do poder futebolístico? Abuso de poder sindical? Abuso de poder cibernético? De abusar de poder as cortes judiciais brasileiras entendem.

O art.14, §9° da Constituição Federal não deixa dúvidas que as leis complementares são responsáveis por criar hipóteses de inelegibilidade. Projeto de lei complementar só pode ser aprovado caso conquiste a maioria absoluta dos votos das duas Casas do Congresso Nacional. Quando um ministro do Supremo Tribunal Federal ocupante do TSE defende uma cassação de mandato por abuso de poder religioso, aumenta-nos a certeza de que segurança jurídica no Brasil é uma ilusão.

Por maior liberdade hermenêutica que o Direito impõe, a divisão dos poderes encerra em si a virtude, precisamente, do equilíbrio. Montesquieu trouxe importante contribuição neste sentido em seu DO ESPÍRITO DAS LEIS (De l’esprit des lois- 1748):
“[…] trata-se de uma experiência eterna que todo homem que possui poder é levado a dele abusar; ele vai até onde encontra limites. Quem, diria! Até a virtude precisa de limites. Para que não se possa abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder limite o poder. Uma constituição pode ser tal que ninguém seja obrigado a fazer as coisas a que a lei não obriga e a não fazer aquelas que a lei permite.”

Não há como aceitar a criação de uma hipótese de inelegibilidade por uma fonte do direito secundária (jurisprudência) se expressamente a fonte primária maior (Constituição Federal) não deixa caminho outro senão o da lei complementar. Realmente é preciso que o poder limite o poder, sobretudo para que a ratio decidendi nunca se desfilie do texto constitucional.

O que se busca investigar judicialmente? O pedido expresso de voto no templo ou a menção ao nome do candidato no momento do culto ou da missa? A tenuidade daquela linha que divide a liberdade religiosa com o tal abuso de poder religioso nos preocupa inclusive por não saber como aquele magistrado interpretará a ação daquele líder religioso. As pastoras com nome de Glória terão dificuldade de frequentar o culto enquanto candidatas estiverem. Há na Bahia uma tradicional família Aleluia. Será preciso pedir ao presidente da celebração que evite aquele grito de louvou se o candidato estiver presente? Não, minhas indagações não são absurdas e o inusitado poderá bater à porta.

Concordo plenamente com o Professor Adriano Soares da Costa quando critica esse abuso hermenêutico e indaga: “ABUSO DE PODER RELIGIOSO? – Abuso de poder político é abuso cometido por agente público no uso das suas funções públicas com o fim de obter resultados eleitorais ilícitos. Incluir por via hermenêutica no conceito de poder político a atividade de líderes religiosos é um alargamento absurdo ao sentido da hipótese de inelegibilidade e a equiparação – em um Estado laico – de líderes religiosos a gestores públicos.”

Esperança nos restou na sustentação do Ministro Alexandre de Moraes ao afirmar não parecer ser possível, em virtude do princípio da legalidade, adotar uma espécie não prevista em lei, que é o abuso de poder religioso, sem que a questão religiosa seja instrumento para se chegar ao abuso de poder econômico. Sustentou que “qualquer atitude abusiva que acabe comprometendo ou gerando abuso de poder político e econômico deve ser sancionado pela legislação eleitoral, nem mais nem menos”.

Caso emplaque o tal abuso de poder religioso no TSE em 2020, prepararei minha pipoca para assistir nas próximas eleições aquela Corte entendendo que padres, pastores e outros líderes religiosos precisarão se desincompatibilizar para concorrerem a um mandato eletivo. Não afirme que é absurdo isso que estou dizendo hoje. Grande Otelo e Herivelton Martins alertaram que iriam acabar com a praça onze. Acabaram. Não se trata de exercício de futurismo, mas um dia sustentei que jamais alguém seria cassado por abuso de poder religioso ou qualquer outra hipótese não prevista em lei.

*Ícaro Werner de Sena Bitar Advogado Especialista em Direito Eleitoral Membro da Comissão de Direito Eleitoral do Conselho Federal da OAB Especialista em Direito Administrativo Especialista em Direito Constitucional Especialista em Licitações e Contratos

Categorias: Coluna

Etiquetas: ,

Comentários estão fechados