Balizadores de fanfarras encarnam espírito de resistência nos desfiles cívicos

Resistência, superação e enfrentamento a opressores e poderosos sempre foram marcas dos atos públicos que representam os grandes feitos brasileiros ao longo da história, e que são anualmente lembrados nos desfiles cívicos da Independência do Brasil e da Bahia. No caso dos bailarinos das fanfarras e bandas escolares de Salvador, o desfile do 2 de Julho é a maior oportunidade para mostrar ao grande público toda a graça e técnica de bailarinos, coreógrafos e entusiastas da dança e da ginástica. Hoje em dia, a apresentação desses artistas se transformou em um espetáculo à parte da própria manifestação histórica.

Autor de pesquisa de mestrado que trata das contradições nas performances e na história de vida dos balizadores de fanfarra, no estudo denominados “Veados de Fanfarra”, Vinícius Zacarias relata que, com o decorrer do tempo, os desfiles cívicos passaram por diversas transformações, e com isso tiveram a perda do caráter e da performance militarista para uma apresentação mais temática e lúdica.

“É algo muito mais espetacular do ponto de vista da teatralização, e as escolas conseguiram se inserir nessas modificações. Na verdade, elas foram os grandes agentes de transformação dos desfiles cívicos, que passaram a ter uma uma função mais pedagógica, de transmissão de conhecimento do que de fato é, como uma espécie de ritual militarista de reafirmação e padrões normativos nacionalistas”, conta.

“As escolas foram fundamentais nessa transformação. Inseridos neste contexto, os balizadores provocam tensões, porque, apesar da modificação dos desfiles de cívico-militares para temáticos, os balizadores têm esse papel de tensionar, pois há resistência aos movimentos de transformação. Os mais conservadores, que prezam por um desfile cívico-militar, e os mais progressistas, que são desconstruídos e prezam pela autonomia do sujeito, pela criatividade e pela arte, tensionam esses movimentos cívicos de fanfarras, que também são parte de uma organização política muito bem estabelecida aqui na Bahia, com federações, organização administrativa, política e cultural. Então, o papel que os balizadores desenvolvem é muito ambíguo e contraditório”, descreve Zacarias.

De acordo com o historiador, há toda uma tradição de uma escola de balizadores que integra uma história de dançarinos premiados nos campeonatos de fanfarra e inspiram as gerações mais recentes. Para ele, existe uma historicidade em torno da prática, em que surgem pessoas que eles têm como inspiração, além de uma disputa muito grande entre si. Esses personagens geralmente são de periferia, oriundos de escola pública e de contextos marginalizados e socialmente inferiorizados, que conseguem, a partir da sua agência e força de vontade, driblar barreiras sociais que envolvem a desigualdade econômica, o racismo e histórias de vida de balizadores que superaram muitos paradigmas pessoais para se consolidar naquilo que são hoje.

Inspiração – Plasticidade, garbo, ritmo, sequências coreográficas, adereços, entre outros, foram, com o tempo, adicionados aos desfiles. Assim, algumas modificações resultaram na distinção entre os três tipos de desfiles: militares, cívicos e temáticos. A cena artística do 2 de Julho de Salvador assume, na temática dos desfiles cívicos, caracterizados por uma desenvoltura menos rígida, vestígios de estilo e postura militar.

Os desfiles acontecem em vários municípios do Estado da Bahia. Balizadores de fanfarra estão posicionados na linha de frente das corporações, entre porta-bandeiras e estandartes. Atualmente, eles podem circular no meio de toda a agremiação, tendo como função a execução de elementos da ginástica rítmica, agregando elegância e beleza às apresentações.

Reinaldo Brito, de 34 anos, é um exemplo de superação pessoal. Ele teve que amputar as pernas por conta de problemas de saúde e, ainda assim, continua sendo balizador, ensinando as novas gerações a partir de oficinas e atuando em desfiles. Bailarino e coreógrafo, Brito trabalha com dança/baliza há 24 anos. Atualmente é o balizador mais antigo em atividade na Bahia. Como coreógrafo, passou a ser referência e professor de muitos jovens balizadores.

“Ser balizador é emocionante e prazeroso. Comecei a dançar na escola, viajando a Bahia balizando. Tenho hoje uma trajetória de referência, como inovador na prática durante os desfiles do 2 de Julho e 7 de Setembro. Passei um tempo afastado por doença, voltando a desfilar um ano depois. Acho importante ser referência para as novas gerações, por achar indispensável a manutenção desse movimento cultural. Para 2023, vou atuar também como jurado do concurso de balizadores, e acho uma importante evolução do meu trabalho”, relata Brito.

Para Reinaldo Brito, o trabalho do balizador não se resume apenas ao dia da apresentação. “É preciso muito trabalho, ensaios na quadra, ralando o joelho, se machucando. Tudo isso para estar sincronizado com o tempo da música, saber quando e onde a música para e reinicia. É uma arte, parte de um espetáculo que exige muito trabalho e sacrifício pessoal”, ressalta. Da mesma forma, outros jovens enveredam para a formação técnica em dança ou ginástica rítmica. Outros ainda desistem da vida como balizadores e vão seguir carreiras formais.

“As transformações foram bastante significativas na década de 90, por causa do reconhecimento do desfile como patrimônio cultural de uma festa híbrida, cheia de manifestações envolvidas de caráter religioso, científico, festivo e carnavalesco. As transformações foram ocorrendo ao longo do tempo, e é necessário que exista um trabalho de investigação histórica. Não existe uma data exata de quando esse movimento começou, pois é algo móvel, que vem acontecendo enquanto assistimos”, reforça Vinícius Zacarias.

Concurso – Como celebração do bicentenário da Independência da Bahia, a Fundação Gregório de Mattos (FGM) trouxe a proposta de inserir um concurso para os balizadores, meninas e meninos, em todas as bandas que desfilam no turno vespertino do 2 de Julho.

“É um concurso que vai além da tradicional disputa de bandas municipais e estaduais que participam do desfile. Essa proposta começou em função do bicentenário, e eu acho que é uma proposta que potencializa e enriquece a tradição e que, de repente, pode ser mantida a partir de agora”, destaca Márcia Fernanda, técnica da Gerência de Currículo da Secretaria Municipal de Educação (SMED), que acompanha as ações de arte e o movimento das bandas marciais das escolas municipais de Salvador.

“A fim de motivar os participantes, estamos fazendo reuniões com os regentes e suas respectivas bandas, estimulando os participantes com seus ensaios a ofertarem aos jurados os melhores desempenhos, visando de repente uma classificação, ou até mesmo a premiação de sua banda neste concurso. Por isso, nosso maior objetivo é manter e alimentar essa tradição e comemorar, também no bicentenário, esse desfile memorável, que faz parte do calendário das bandas”, completa ela. Foto: Lucas Moura / Secom PMS

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