Medidas do Brasil são ‘insuficientes’ para conter coronavírus, diz força-tarefa internacional de cientistas

Essa é uma das conclusões de um estudo inédito assinado por quase 80 cientistas de instituições brasileiras e do Reino Unido a partir de dados colhidos entre março e abril de 85 municípios.

A pesquisa aponta que, apesar de insuficiente para reduzir a expansão do coronavírus, o fechamento do comércio e de escolas em São Paulo e no Rio de Janeiro após o início da pandemia chegou a reduzir a taxa de transmissão do vírus para até um terço do identificado antes das medidas.

“O estudo oferece evidências de que as intervenções em vigor continuam insuficientes para manter a transmissão do vírus sob controle no país”, diz o artigo, primeiro sobre a pandemia na América Latina a ser publicado pela revista Science, nesta quinta-feira (23).

Divulgado em um momento em que o Brasil registra recordes diários de casos e passa da casa das 80 mil mortes, ficando atrás neste quesito apenas dos EUA, o documento assinado pela força-tarefa de cientistas aponta a “necessidade urgente de medidas como testagem, mapeamento de contatos entre pessoas contaminadas medidas de distanciamento social” no país.
Também entre os resultados do estudo, segundo os cientistas, está o maior conjunto de dados genômicos sobre o novo coronavírus na América Latina.

Entre março e abril, a força-tarefa sequenciou 427 novos genomas do vírus no Brasil – um material inédito que pode ajudar na resposta a vacinas e na antecipação de novos surtos.

Circulação

A partir de dados de anônimos de circulação de pessoas a partir de telefones celulares, o estudo permitiu informações estatísticas que permitiram que os pesquisadores estimassem a taxa de transmissão do vírus, representada pela letra R (reproduction number, ou número de reprodução, em tradução livre).

“Até vacinas e medicamentos estarem disponíveis, as medidas sociais de distanciamento são essenciais para reduzir o número de infecções e salvar vidas”, diz à BBC News Brasil o cientista Nuno Rodrigues Faria, professor do Imperial College (Londres) e da Universidade Oxford e um dos autores do estudo.

A partir da mobilidade das pessoas, o estudo mostra que medidas como o fechamento de escolas e do comércio em meados de março, no Rio de Janeiro e em São Paulo, permitiram que a taxa de transmissão R caísse de 3 para valores entre 1 e 1,6.

“Resultados acima de 1 indicam que a transmissão está crescendo. Abaixo de 1, que está sob controle”, explica o professor. Desde o relaxamento das medidas de restrição, a taxa R se mantém acima de 1 no Brasil.

O estudo também mediu o impacto das limitações impostas à entrada de estrangeiros no país e revela que mais de 100 linhagens do vírus haviam entrado em diferentes lugares do Brasil até o fim de abril, vindo principalmente da Europa.

A maioria esmagadora dos vírus presentes no Brasil chegaram antes das restrições à entrada de estrangeiros, indicando que as medidas chegaram tarde demais.

Incêndio
Em 19 de marco, o governo brasileiro determinou o fechamento de quase toda a fronteira terrestre do país.

Onze dias depois, em 30 de março, a partir de recomendação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o governo proibiu a entrada de estrangeiros de qualquer nacionalidade no Brasil por meio de voos internacionais.

Antes do bloqueio em aeroportos, segundo a Associação Brasileira das Empresas Aéreas, o número de voos internacionais com chegada e saída do Brasil já havia despencado em mais de 85% ante o mesmo período do ano passado.

“O número de voos caiu e muito com as restrições impostas sobre viagens, mas essas reduções aconteceram depois do das linhagens no país – o vírus já estava circulando, já estava estabelecido.”

As principais portas de entrada para o coronavírus no Brasil, segundo o estudo, foram os estados altamente conectados como São Paulo (36%), Minas Gerais (24%), Ceará (10%) e Rio de Janeiro (8%).

Em outras palavras, compara o professor, “novas faíscas não eram necessárias para o incêndio na floresta, ele já estava acontecendo”.

Medidas coordenadas
Fruto da colaboração entre vários grupos de pesquisa, o estudo começou como uma atividade do Centro de Genômica e Epidemiologia de Arbovírus (CADDE) e se expandiu entre instituições do Reino Unido e do Brasil.

Ao fim, 75% dos autores são oriundos de instituições brasileiras como USP, UFMG, UFRJ, IPEA, UNICAMP, FGV, entre outras.

“Há uma força muito forte de pesquisa brasileira”, diz Nuno Rodrigues Faria, que liderou as pesquisas no Reino Unido. No Brasil, A força-tarefa foi chefiada por Ester Cerdeira Sabino, pesquisadora e professora do IMT-USP.

Faria diz que o estudo reforça a necessidade de “medidas de distanciamento social e físico são recomendadas para diminuir a dispersão do vírus”.

“Isso permite que as cadeias de transmissão sejam quebradas e previne que novas cadeias de transmissão apareçam”, diz.

A recomendação mais aceita entre de cientistas é o distanciamento físico entre as pessoas, de preferência de dois metros. O isolamento social também reduz contatos com superfícies potencialmente contaminadas.

“Para que sejam efetivas, todas as campanhas precisam ser implementadas com engajamento total de todos os membros da sociedade. Daí a importância de medidas coordenadas no pais para trazer os melhores resultados possíveis”, diz o professor.

‘Revolução genômica’
A partir de amostras colhidas entre março e abril, vindas de pacientes que testaram positivo para o novo coronavírus em 85 municípios em todo o país, os pesquisadores sequenciaram 427 novos genomas do coronavírus no Brasil.

O resultado criaria o maior conjunto de dados genômicos sobre o novo coronavírus na América Latina.

“Como cientistas, temos que estar sempre um passo à frente. Entender a diversidade do vírus em várias partes do país e ajuda a antecipar quaisquer potenciais problemas”, diz Faria.

“Estes dados genéticos de várias partes do Brasil vão ajudar, por exemplo, a entender melhor a resposta potencial a uma vacina, assim que ela for implementada. Ajudam a entender melhor se os métodos de diagnóstico funcionam bem e, em caso de problemas, por que funcionam mal”, diz o cientista.

Entre 2015 e 2020, por exemplo, o esforço conjunto de combate à epidemia do zika vírus resultou no sequenciamento de cerca 500 genomas.

Desde janeiro, a epidemia do novo coronavírus já resultou em mais de 60 mil genomas sequenciados, um recorde global.

“Estamos vivendo uma revolução genômica e essa revolução só vai ajudar e facilitar a detecção e controle de novos surtos no futuro”, diz Faria à reportagem.

A identificação de características genéticas do vírus permite que comparações entre amostras presentes no Brasil em outras partes do mundo. Assim, os genomas ajudam na construção de uma espécie de árvore genealógica do vírus, indicando em termos cronológicos e geográficos de onde o vírus vem e para onde ele circula.

O sequenciamento também permite que se identifiquem mutações conforme a evolução da pandemia.

“O genoma é o material genético do vírus que é acoplado em uma determinada pessoa em um determinado dia e um determinado lugar. Tem sempre uma data e um local associado a uma determinada mostra, que depois é sequenciada”, explica o professor. (BBC NEWS)

Categorias: Noticias

Comentários estão fechados