‘Tanto faz se morrer hoje ou daqui a um mês’: entenda como pensa quem desrespeita a quarentena

Manhã de sexta-feira, de frente para o mar de Itapuã, fim de semana começando antecipado. Um grupo de cerca de dez homens se reveza para jogar cartas em mesas improvisadas na Orla. Não seria um problema se essa cena não acontecesse no meio de uma pandemia que já matou mais de 1,3 mil pessoas pela covid-19 na Bahia. E mais: acontece repetidamente, todos os dias.

Sem seguir a cartilha do distanciamento social para evitar a propagação do coronavírus, o grupo conversa próximo. Um toca no braço do outro. “Aqui não tem quarentena, não, moça. Aqui tem sessentena, quinquentena”, diz o vigilante Euvaldo Batista, 59 anos, que parece comandar a partida, em referência às idades da maioria dos presentes.

Mesmo que as medidas de isolamento social tenham sido decretadas em Salvador e na Bahia desde meados de março, não é muito difícil encontrar cenas como essa. São grupos que, em maior ou menor intensidade, demonstram e dizem não ligar para as recomendações de autoridades de saúde do mundo inteiro.

Por isso, em uma sexta-feira de maio, o CORREIO percorreu localidades da Orla da cidade, para entender os motivos pelos quais ainda têm gente que não respeita a quarentena. Entre aqueles que encontramos e que se dispuseram a falar, uma coincidência: todos homens, com idades na faixa dos 50 anos, como previa Euvaldo. No discurso deles, não havia negação da doença.

Por outro lado, em alguns, uma atitude de quem dizia não ter medo da doença. Para a epidemiologista Júlia Pescarini, da Rede Covida, formada por pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz-BA) e da Universidade Federal da Bahia (Ufba), essa postura diante da quarentena pode ser entendida como um comportamento de risco.

Ela ressalta, porém, que o termo “comportamento de risco” ainda não está sendo utilizado por pesquisadores como já acontece com outras doenças infectocontagiosas. O uso de drogas, por exemplo, é considerado por cientistas um comportamento de risco para o HIV.

Todos encontrados nesta reportagem eram homens. São eles também quem mais tem morrido por coronavírus na Bahia, ainda que não sejam os mais infectados. De acordo com a Secretaria da Saúde do Estado (Sesab), entre todas as mortes da Bahia, 55% eram homens. As mulheres, por sua vez, são 53% dos casos confirmados da doença.

No ‘playground’
“Para mim, a quarentena não funciona. Não existe”, reforça, categórico, o vigilante Euvaldo. Desempregado, ele mora na rua há três anos. Vive sozinho desde que deixou a casa de uma das filhas. Os quatro filhos – hoje já casados e com suas respectivas famílias – não queriam que ele estivesse nas ruas.

Mesmo assim, Euvaldo diz ter escolhido isso. “Na casa de minha filha, eu não tinha liberdade. Tinha horário para tudo. Agora, cada um está em sua casa. O único ‘bolo doido’ sou eu mesmo”, conta. Ele admite que, diariamente, o grupo de homens se reúne para jogar com ele.

Em uma mesa ao lado da que quatro dos homens jogam cartas, estão o ex-bancário Alexandre de Andrade, 57, e o auxiliar de refrigeração Wilson Paulo, 47. Entre os dois, em cima da mesa uma máscara de tecido verde. Algum deles tinha tirado? Nenhum usava protetor facial.

“Não é de ninguém, não. Estava aí já. Eu nunca usei máscara, esse negócio na cara”, diz Alexandre. Wilson, por sua vez, diz que tem máscara. Já está mais habituado a usar. Dessa vez, porém, deixou em casa. Ficou tranquilo quando chegou à praia e viu que, na sua opinião, não tinha aglomeração.

Mas não é bem assim. Itapuã é o sétimo bairro com maior número de denúncias de aglomeração registradas pela ouvidoria da prefeitura de Salvador através do Disque Coronavírus 160. Desde o dia 16 de março, foram 2.616 reclamações em Itapuã, que só perde para Cajazeiras (4.899), Fazenda Grande do Retiro (3.246), Pernambués (3.185), Paripe (3.040), Liberdade (2.828) e São Marcos (2.742).

Itapuã passou, inclusive, por medidas mais duras de restrição de circulação determinadas pela prefeitura de Salvador, este mês. Por sete dias, houve, por exemplo, a interdição total da Rua Genebaldo Figueiredo, uma das mais movimentadas. Na última quinta-feira (18), o bairro tinha pelo menos 435 casos de coronavírus confirmados, de acordo com a Secretaria Municipal da Saúde (SMS).

Assim como a maioria dos amigos ali, não é casado e não tem filhos. “Eu tenho medo (de pegar a doença), mas não vou ficar preso em casa. Meu amigo Césinha, que era das Obras Sociais Irmã Dulce (Osid), pegou. Por que mandaram ele para casa? Ele piorou, morreu. Mas eu vou daqui para casa e de casa para cá, porque não tem coisa melhor do que ficar na praia”, diz Wilson.

Ele se referia ao técnico de enfermagem Antônio César Ferreira Pitta de Jesus, mais conhecido como Césinha. Aos 48 anos, Antônio César, que era funcionário do Hospital Santo Antônio, administrado pelas Osid, morreu pelo coronavírus em

Há pessoas que, comprovadamente, não conseguem ter empatia – são os psicopatas e os narcisistas. No entanto, como destaca Gilmara, não apenas quem tem transtorno de personalidade deixa de conseguir se colocar no lugar do outro.

“Tem pessoas que não fecham critério para o diagnóstico, mas tem traços. E outra questão é que, culturalmente, os brasileiros têm dificuldade com a disciplina. O isolamento convida a ter disciplina e arcar com regras, com leis”, analisa.

Essa dificuldade em cumprir o distanciamento social não depende de renda, nem de escolaridade, segundo uma investigação do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).

O contexto político também pode ser observado. Para a psicóloga, entre as pessoas que não aceitam as medidas de restrição, há grupos que têm interesses diretamente ligados ao fim do isolamento – é o exemplo de um empresário ou empresária que não pode parar sua empresa naquele momento.

Assim, a postura de figuras públicas pode servir para referendar ou não um determinado comportamento. “Se eu vejo uma pessoa dizendo para ir para a rua viver a vida, vou usar aquilo como afirmação para o que está dentro de mim. Mas, se eu tenho consciência coletiva, se eu entendo que o vírus está aí e tenho conexão com essa realidade, não tem motivo para eu assumir o discurso de outra pessoa como verdade”, pondera.

Brasileiros com idades entre 45 e 59 anos são os que melhor avaliam o governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), de acordo com a última pesquisa do Datafolha sobre o tema, realizada entre 26 e 26 de maio. Nessa faixa etária, os que definem o governo como ótimo/bom é de 37%, ao lado daqueles com 35 a 44 anos. Homens também são maioria na aprovação – 38% veem o governo como ótimo ou bom.

No levantamento geral, a média é de que 33% vejam o governo como ótimo ou bom. Por outro lado, os que veem como ruim ou péssimo são 43%; enquanto 22% acreditam que é regular.

Desde o início do enfrentamento à pandemia, Bolsonaro tem desestimulado o isolamento social e comparecido a aglomerações. Um estudo de professores da Universidade de Cambridge (Inglaterra) e da Fundação Getúlio Vargas analisou o papel de líderes políticos na Bahia, através do caso de Bolsonaro. Na pesquisa, concluiram que havia um forte efeito de persuasão do presidente no comportamento de seus apoiadores.

“Nós documentamos um decréscimo significante no distanciamento social nos municípios pró-Bolsonaro, após situações de visibilidade do presidente contra políticas de e comportamento de isolamento social. Nossos resultados empíricos enfatizam a mudança comportamental entre os cidadãos a partir do exemplo do líder político”, dizem, em inglês, no estudo More than Words: Leaders’ Speech and Risky Behavior During a Pandemic. (Correio*)

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